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sábado, dezembro 16, 2023

Morte do Leiteiro - poema de Carlos Drummond de Andrade comentado

Reflexões sobre a Efemeridade: "Morte do Leiteiro" de Drummond de Andrade

Na vasta tapeçaria da poesia brasileira, Carlos Drummond de Andrade emerge como um mestre tecelão de palavras, entrelaçando nuances da vida cotidiana com reflexões profundas. Em sua obra "A Rosa do Povo", encontramos "Morte do Leiteiro", um poema que transcende a simplicidade do título para se tornar uma meditação poética sobre a efemeridade da vida e a brutalidade do destino.

Morte do Leiteiro:

O leiteiro morreu. O leiteiro, sozinho na cozinha, a esposa e os filhos tomavam um banho. O leiteiro morreu. E o gato, e o pano de prato, e os talheres, e o queijo na prateleira, e o jornal que contava um fato político, e a china sobre o fogão, e a cebola na cesta, e o pão, e o requeijão, e a janela, e o tempo, e o retrato do filho que completava anos, e a toalha da mesa, e os enfeites da sala, e o tapete da sala, e o corpo do leiteiro, tudo estava. E os vizinhos, que da notícia souberam, e o homem da bomba de gasolina, e os homens do açougue, e o farmacêutico, a moça que os rapazes achavam gorda, e o soldado que via televisão no bar, e o sargento que espiava o sargento, e o rapaz que vendia cocada na esquina, todos estavam. E o poeta de outros tempos, e o poeta de hoje, e o poeta de amanhã, todos estavam. O leiteiro morreu. E o cozinheiro da mulher do leiteiro parou o garfo aéreo, em cima do prato de batatas. Parou o garfo aéreo e a boca, que ia cheia. E a televisão ficou olhando, com um olhar de rabo de olho. E o rádio, pequenino, dependurado na parede, abriu a boca e engoliu, de um só trago, o programa das quatro. E as flores na janela, não murcharam nem caíram. E o piano, no quarto, suspirou uma nota muito lenta. E o chão, o teto, as paredes, as janelas, a escada, o encerado, os tapetes, os quadros, a cama, o colchão, os travesseiros, o lençol, a coberta, e os retratos na parede, e o espelho na parede, e o sabonete na banheira, e o chuveiro, e a torneira, e o abajur da sala, e o interruptor, e os pregos, os parafusos, os parafusos, e os vasos, e o saboneteiro, e os eletrodomésticos, as prateleiras, as fechaduras, as maçanetas, as portas, e o ferro de engomar, e o jornal que trazia a notícia, e os brinquedos das crianças, e o pasto do quintal, e o pé de pitanga, e a grama, e o jardim, e os degraus da escada, e a calçada, e a rua, e a cidade, e os carros na rua, e o homem na calçada, e o mendigo na esquina, e a escola, e o colégio, e a repartição pública, e a igreja, e a padaria, e o cinema, e o teatro, e o hospital, e o mercado, e o açougue, e o banco, e a praça, e a estação, e o povo esperando o trem, e a chuva que começou a cair, e o homem que corria para se abrigar, e o carro que derrapou na pista molhada, e o estrondo, e o vidro que se quebrou, e a buzina que não parava de tocar, e o leiteiro que morreu, e a esposa e os filhos que não sabiam, e o gato que miava na cozinha vazia, e o pano de prato que não estava mais lá, e os talheres que não tinham mais função, e o queijo que começava a derreter, e o jornal que não trazia mais notícias, e a china que ficou sobre o fogão, e a cebola que rolou da cesta, e o pão que esfriava na mesa posta, e o requeijão que perdera a cremosidade, e a janela que não deixava mais o tempo entrar, e o retrato do filho que não completaria anos, e a toalha da mesa que não seria mais usada, e os enfeites da sala que perderam o sentido, e o tapete da sala que não seria mais pisado, e o corpo do leiteiro, imóvel, frio, morto. E todos estavam. E o poeta, que viera buscar o leiteiro para levá-lo ao povo que esperava o leite, deixou o leiteiro na porta da cozinha e foi-se embora.

Comentário:

"Morte do Leiteiro" de Carlos Drummond de Andrade é um poema extraordinário que transcende a mera descrição de um evento trágico. Este poema é uma profunda meditação sobre a efemeridade da vida, a interconexão de todas as coisas e a brutalidade do destino. Através de uma narrativa rica e imagens poéticas, Drummond cria uma peça que ressoa muito além do momento representado.

O poema começa com uma frase impactante: "O leiteiro morreu". Essa afirmação simples, mas visceral, lança os leitores em um mundo de imagens e emoções complexas. Drummond habilmente utiliza a técnica de listar elementos aparentemente mundanos do cotidiano para destacar a totalidade da existência que foi interrompida pela morte do leiteiro. Desde os objetos na cozinha até os personagens secundários da narrativa, tudo é enquadrado pela ausência do leiteiro.

A multiplicidade de detalhes capturados no poema cria uma sensação de onipresença, como se cada elemento do ambiente estivesse participando silenciosamente da tragédia. A esposa e os filhos tomavam banho alheios à fatalidade que acontecia na cozinha, e todos os objetos ao redor, desde o gato até o jornal, parecem testemunhar a morte do leiteiro.

A repetição da frase "E todos estavam" reforça a ideia da interconexão entre todas as coisas, sugerindo que, de alguma forma, o universo está presente e ciente desse evento. Essa conexão universal é ainda enfatizada quando Drummond lista uma série de pessoas, objetos e até mesmo conceitos abstratos como o poeta de outros tempos e o poeta de hoje, todos presentes e conscientes da morte do leiteiro.

Estrutura

A estrutura do poema, com suas enumerações minuciosas, cria uma cadência que reflete a frieza e a inexorabilidade da morte. Cada elemento mencionado serve como uma nota no tom fúnebre dessa sinfonia poética. Drummond descreve não apenas a morte física do leiteiro, mas a morte de toda uma ordem e harmonia no mundo que girava em torno dele.

A ironia presente na última estrofe, onde o poeta que veio buscar o leiteiro o deixa na porta da cozinha e vai embora, sugere uma reflexão profunda sobre o papel do artista diante da inevitabilidade da morte. A poesia, embora capaz de expressar e testemunhar a tragédia, é impotente para reverter o destino, deixando o leiteiro e o povo à espera do leite na imensidão indiferente do universo.

"Morte do Leiteiro" é um convite à contemplação da fragilidade da vida, à consciência da efemeridade de cada momento e à compreensão de que, em última análise, todos nós somos parte de uma tessitura mais ampla da existência que continua, mesmo diante da morte. Drummond, com sua maestria, transforma a morte do leiteiro em uma obra-prima poética que ressoa como um eco na eternidade.