"Construção", lançada em 1971 por Chico Buarque, é uma obra-prima da Música Popular Brasileira que retrata a rotina e a tragédia de um trabalhador da construção civil. A canção destaca-se por sua estrutura lírica inovadora e pela crítica social implícita em seus versos.
Estrutura e Narrativa da Canção
A música é composta por três estrofes que narram o cotidiano de um operário. Cada estrofe apresenta variações sutis, especialmente nas palavras finais de cada verso, todas proparoxítonas, conferindo um ritmo marcante e repetitivo à canção. Essa escolha estilística reforça a mecanicidade e a alienação presentes na vida do trabalhador.
Primeira Estrofe
"Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego."
Nesta estrofe, o trabalhador vive momentos cotidianos com intensidade, como se cada ação fosse a última. A repetição de "como se fosse" enfatiza a efemeridade da vida e a iminência da tragédia. A narrativa culmina na morte abrupta do operário, que "morreu na contramão atrapalhando o tráfego", simbolizando a indiferença da sociedade perante sua existência.
Segunda Estrofe
"Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público."
A segunda estrofe repete a estrutura da primeira, mas com alterações nas palavras finais de cada verso. Essas mudanças sutis criam novos significados e perspectivas, reforçando a ideia de rotina e a desumanização do trabalhador, que se torna quase uma máquina em seu labor diário.
Terceira Estrofe
"Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado."
Na terceira estrofe, a desumanização é ainda mais evidente. O amor é comparado a uma máquina, e as ações tornam-se automáticas, refletindo a alienação do indivíduo em uma sociedade que valoriza mais a produtividade do que a vida humana.
Análise Crítica e Contexto Social
"Construção" foi lançada durante o regime militar no Brasil, período marcado por censura e repressão. Chico Buarque utiliza-se de metáforas e de uma estrutura complexa para driblar a censura e criticar a exploração dos trabalhadores e a indiferença da sociedade perante suas condições. A morte do operário "atrapalhando o tráfego" simboliza como a vida humana é secundária em relação ao progresso e à rotina urbana.
A escolha de palavras proparoxítonas confere um ritmo truncado à canção, refletindo a rigidez e a repetitividade da vida operária. Além disso, a repetição de estruturas frasais reforça a ideia de ciclo e rotina, enquanto as variações nas palavras finais sugerem diferentes nuances e perspectivas sobre a mesma realidade.
Conclusão
"Construção" é uma canção que transcende o tempo, permanecendo relevante ao abordar temas universais como a alienação do trabalhador, a desumanização e a indiferença social. Através de uma estrutura lírica inovadora e de uma narrativa comovente, Chico Buarque convida o ouvinte a refletir sobre as injustiças sociais e a valorizar a vida humana em meio ao progresso desenfreado.