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domingo, novembro 20, 2022

As dores do Mundo - Arthur Schopenhauer



 Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma

de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à vida e

enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é

certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra.

***

Assim como um regato corre sem ímpetos, enquanto não encontra obstáculos, do mesmo modo

na natureza humana, como na natureza animal, a vida corre incosciente e descuidosa, quando coisa

alguma se lhe opõe à vontade. Se a atenção desperta, é porque a vontade não era livre e se produziu

algum choque. Tudo o que se ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste,

isto é, tudo que há de desagradável e de doloroso, sentimo-lo ato contínuo e muito nitidamente. Não

atentamos na saúde geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro onde o sapato nos molesta; não

apreciamos o conjunto próspero dos nossos negócios, e só pensamos numa ninharia insignificante que

nos desgosta. — O bem-estar e a felicidade são portanto negativos, só a dor é positiva.

Não conheço nada mais absurdo que a maior parte dos sistemas metafísicos, que explicam o

mal como uma coisa negativa; só ele, pelo contrário, é positivo, visto que se faz sentir... O bem, a

felicidade, a satisfação são negativos, porque não fazem senão suprimir um desejo e terminar um

desgosto.

Acrescente-se a isto que em geral achamos as alegrias abaixo da nossa expectativa, ao passo

que as dores a excedem grandemente.

Se quereis num momento esclarecer-vos a este respeito, e saber se o prazer é superior ao

desgosto, ou se apenas se compensam, comparai a impressão do animal que devora outro, com a

impressão do que é devorado.

***

A mais eficaz consolação em toda a desgraça, em todo o sofrimento, é voltar os olhos para

aqueles que são ainda mais desgraçados do que nós: este remédio encontra-se ao alcance de todos.

Mas que resulta daí para o conjunto?

Semelhantes aos carneiros que saltam no prado, enquanto, com o olhar, o carniceiro faz a sua

escolha no meio do rebanho, não sabemos, nos nossos dias felizes, que desastre o destino nos prepara

precisamente a essa hora — doença, perseguição, ruína, mutilação, cegueira, loucura, etc.

Tudo o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer.

Na vida dos povos, a História só nos aponta guerras e sedições: os anos de paz não passam de curtos

intervalos de entreatos, uma vez por acaso. E da mesma maneira a vida do homem é um combate

perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros

homens. Em toda a parte se encontra um adversário: a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com

as armas na mão.

***

Ao tormento da existência vem ainda juntar-se a rapidez do tempo, que nos inquieta, que nos

não deixa respirar, e se conserva atrás de cada um de nós como um vigia dos forçados de chicote em

punho. — Poupa apenas aqueles que entregou ao aborrecimento.

***

Portanto, assim como o nosso corpo rebentaria se estivesse sujeito à pressão da atmosfera, do

mesmo modo se o peso da miséria, do desgosto, dos reveses e dos vãos esforços fosse banido da vida

do homem, o excesso da sua arrogância seria tão desmedido, que o faria em bocados ou pelo menos o

conduziria à insânia mais desordenada e até à loucura furiosa. — Em todo o tempo, cada um precisa

ter um certo número de cuidados, de dores ou de miséria, do mesmo modo que o navio carece de

lastro para se manter em equilíbrio e andar direito.

Trabalho, tormento, desgosto e miséria, tal é sem dúvida durante a vida inteira o quinhão de

quase todos os homens. Mas se todos os desejos, apenas formados, fossem imediatamente realizados,

com que se preencheria a vida humana, em que se empregaria o tempo? Coloque-se esta raça num país

de fadas, onde tudo cresceria espontaneamente, onde as calhandras voariam já assadas ao alcance de

todas as bocas, onde todos encontrariam sem dificuldade a sua amada e a obteriam o mais facilmente

possível — ver-se-ia então os homens morrerem de tédio, ou enforcarem-se, outros disputarem,

matarem-se, e causarem-se mutuamente mais sofrimentos do que a natureza agora lhes impõe. —

Assim para semelhante raça nenhum outro teatro, nenhuma outra existência conviriam.

Na primeira mocidade, somos colocados em face do destino que se vai abrir diante de nós,

como as crianças em frente do pano de um teatro, na expectativa alegre e impaciente das coisas que

vão passar-se em cena; é uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Aos olhos daquele que

sabe o que realmente se vai passar, as crianças são inocentes culpados condenados não à morte mas à

vida, e que todavia não conhecem ainda o conteúdo da sua sentença. — Nem por isso todos deixam de

ter o desejo de chegar a uma idade avançada, isto é, a um estado que se poderia exprimir deste modo:

"Hoje é mau, e cada dia o será mais — até que chegue o pior de todos."

(Fragmento do Livro 'As dores do Mundo de Arthur Scopenhauer)

Do pensar por si - Arthur Schopenhauer



Uma biblioteca pode ser muito grande, mas desordenada não é tão útil quanto uma pequena e bem organizada.

Do mesmo modo, um homem pode possuir uma grande quantidade de conhecimento, mas se não o tiver

trabalhado em sua mente por si, tem muito menos valor que uma quantidade muito menor que foi

cuidadosamente considerada. Pois é somente quando um homem analisa aquilo que sabe em todos os aspectos,

comparando uma verdade com outra, que se dá conta por completo de seu próprio conhecimento e adquire seu

poder. Um homem só pode ponderar a respeito daquilo que sabe — portanto, deveria aprender algo; todavia,

um homem só sabe aquilo sobre o que ponderou.

Ler e aprender são coisas que qualquer indivíduo pode fazer por seu próprio livre-arbítrio — mas pensar não. O

pensar deve ser incitado como o fogo pelo vento; deve ser sustentado por algum interesse no assunto em

questão. Esse interesse pode ser puramente objetivo ou meramente subjetivo. O último existe em questões que

nos dizem respeito pessoalmente. O interesse objetivo encontra-se somente nas cabeças que pensam por

natureza, para as quais pensar é tão natural quanto respirar — mas são muito raras; por isso há tão pouco dele

na maioria dos homens do conhecimento.


(Fragmento extraído do livro Do Pensar por Si - Arthur Scopenhauer)