Google
 

terça-feira, novembro 25, 2008

Clarice Lispector - Pensamentos

 (...) Minha vida é um único dia. E é assim que o passado me é presente e futuro. Tudo numa só vertigem. E a doçura é tanta que faz insuportável cócega na alma. Viver é mágico e inteiramente inexplicável. Eu compreendo melhor a morte. Ser cotidiano é um vício. O que sou? Sou um pensamento. Tenho em mim o sopro? tenho? mas quem é esse tem? quem é que fala por mim? tenho um corpo e espírito? eu sou um eu? "É exatamente isto, você é um eu”, responde-me o mundo terrivelmente. E fico horrorizado. Deus não deve ser pensando jamais senão Ele foge e eu fujo. Deus deve ser ignorado e sentido. Então Ele age. Pergunto-me porque Deus pede tanto que seja amado por nós? resposta possível: porque assim nós amamos a nós mesmos e em nos amando, nós nos perdoamos. E como precisamos de perdão. Porque a própria vida já vem mesclada ao erro.(...)

Clarice Lispector (‘Um sopro de Vida’,Editora Nova Fronteira p. 17-18)

(...)

Nós ainda somos moços podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira.

Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória de cada dia.

Não temos amado, acima de todas as coisas.

Não temos  aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos.

Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.

Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada.

Temos construído catedrais, e ficando do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.

Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.

Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.

Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.

Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.

Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios.

Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível.

Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.

Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.

Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa.

Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.

Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.

Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo” e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.

Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.

Temos chamado de fraqueza a nossa candura.

Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.

E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

Mas eu escapei disso...

(...)

Clarice Lispector (‘Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres’, Nova Fronteira, 8a. ed. 1980,p. 49-50)