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quarta-feira, novembro 26, 2008

Rainer Maria Rilke psicografava?

Leiam esses versos do poeta alemão Rainer Maria Rilke (das Elegias de Duíno) e me digam se não parece uma psicografia. O próprio poeta admitiu para uma amiga que sua inspiração parecia uma coisa sobrenatural. Prestem atenção nos trechos que ele fala de jovens mortos onde se pode ler por exemplo:

“Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar
A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco
O puro movimento de seus espíritos. “

Talvez essa fosse a razão para qual ele deveria escrever sobre sentimentos tão profundos: Aliviar o espírito daqueles que embora já mortos precisavam justificar seus erros e atitudes que tiveram quando vivos.

 E ainda, na seqüência das elegias há uma farta referência ao mundo espiritual.

Eu pessoalmente achei isso muito interessante Chega a me ocorrer que parte da obra de Rilke talvez fosse obra de espíritos sem que ele tivesse total consciência disso.

Antes do poema uma explicação sobre as elegias que Rilke escreveu (retiradas do site: http://www.culturapara.art.br):

"As Elegias de Duíno, de Rilke, constituem não só uma das mais importantes obras da literatura alemã da primeira metade do século XX, como também uma das poéticas mais significativas do nosso tempo.

Ainda que várias circunstâncias tivessem concorrido para retardar a conclusão desse longo poema, onde se encontra visão poética e trágica de um mundo que desaparece, essa demora foi em grande parte motivada - segundo testemunho de Maurice Betz - pela preocupação do poeta em lhe dar a necessária unidade.

Escritas, como foram, sob a pressão de uma força que ao poeta pareceu de origem sobrenatural, como ele mesmo relatou em carta a Marie von Thurn und Taxis e Lou Andreas Salomé, as elegias mostram, em inúmeros trechos, a preocupação absorvente e exclusiva de Rilke em transmitir a sua mensagem, o seu descobrimento, embora para isso tivesse de forçar, como forçou por vezes na V elegia, a lógica da linguagem e, em certos versos, a própria estrutura da língua alemã.

O tema central das Elegias é o mistério do homem e de seu destino num mundo que desaparece. Ao redor, porém, desse tema central alguns temas secundários formam a estrutura do poema. E o primeiro objetivo de uma interpretação deve consistir na revelação desses temas secundários, na manifestação do que eles encobrem e pressupõem. Entre estes o tema do anjo é o que aparece em primeiro lugar. Encontramo-lo já no primeiro verso da I, e ele volta a aparecer nas II, IV, V, VII, e X elegias. O anjo é aquele que, como notou E. Schmuidt-Pauli, representa nas elegias uma realidade espiritual superior.(...)

As Elegias representam a obra culminante realizada pelo poeta nessa segunda fase da sua evolução. Nela está condensada toda a sua experiência artística e humana, os dramas de sua vida, o problema do amor e a concepção da vida e da morte como um todo inseparável no tempo, dentro do qual existimos ou deixamos de existir.

Nas elegias, a forma adotada pelo poeta difere sensivelmente daquela em que foram escritas as suas obras anteriores. Sem rima e sem métrica, em verso livre (com exceção da quarta e da oitava que estão escritas no equivalente alemão do "blank verse" inglês, como observou C.M. Bowra, no seu estudo sobre tradição simbolista) as Elegias antecipam, por assim dizer, a seqüência psicológica que T. S. Eliot usou em "Waste Land".

PRIMEIRA ELEGIA

Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo

De obscuro soluço. Ah! A quem podemos
Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,
E os animais sagazes logo percebem
Que não estamos muito seguros
No mundo interpretado. Resta-nos talvez
Alguma árvore na encosta que diariamente
Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem
E a mimada fidelidade de um hábito,
Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.
Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços
Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada,
Levemente decepcionante, que para o solitário coração
Se impõe penosamente. Ela é mais leve para os amantes?
Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.
Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio
Para os espaços que respiramos; talvez que os pássaros
Sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.

Sim, as primaveras precisavam de ti.Muitas estrelas
Esperavam que tu as percebesses. Do passado
Erguia-se uma vaga aproximando-se, ou
Ao passares sob uma janela aberta,
Um violino se entregava. Tudo isso era missão.
Mas a levaste ao fim? Não estavas sempre
Distraído pela espera, como se tudo te ansiasse
A bem amada? (onde queres abrigá-la
Então, se os grandes e estranhos pensamentos entram
E saem em ti e muitas vezes ficam pela noite.)
Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito
Ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.
Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu
Achaste muito mais amorosas que as apaziguadas. Começa
Sempre de novo o louvor jamais acessível;
Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi
Apenas um pretexto para ser : o seu derradeiro nascimento.
As amantes, porém, a natureza exausta as toma
Novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.
Já pensaste pois em Gaspara Stampa
O bastante para que alguma jovem,
A quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo
Dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?
Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar
Mais fecundas para nós? Não é tempo de nos libertarmos,
Amando, do objeto amado e a ele tremendo resistirmos Como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?
Pois parada não há em /parte alguma.

Vozes, vozes.Escuta, coração como outrora somente
os santos escutavam: até que o gigantesco apelo
levantava-os do chão; mas eles continuavam ajoelhados,
inabaláveis, sem desviarem a atenção:
eles assim escutavam. Não que tu pudesses suportar
a voz de Deus, de modo algum. Mas escuta o sopro,
a incessante mensagem que nasce do silêncio.
Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direção /a ti.
Onde quer que penetraste, nas igrejas
De Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, /tranqüilamente?
Ou uma augusta inscrição não se impôs a ti
Como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.
Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar
A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco
O puro movimento de seus espíritos.

Certo, é estranho não habitar mais terra,
Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,
Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas
Não dar sentido do futuro humano;
O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo
Não ser mais, e até o próprio nome
Deixar de lado como um brinquedo quebrado.
Estranho, não desejar mais os desejos. Estranho,
Ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto
No espaço. E estar morto é penoso
E cheio de recuperações, até que lentamente se divise
Um pouco da eternidade. - Mas os vivos
Cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.
Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes
Se caminham entre vivos ou mortos. A correnteza eterna
Arrebata através de ambos os reinos todas as idades
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.

Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,
Perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno
suavemente se deixa, ao crescer.Mas nós que de tão grandes
mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes
o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar /sem eles?
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,
A primeira música ousando atravessou o árido letargo,
Que então no sobressaltado espaço, do qual um quase /divino adolescente
escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou
naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?


Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu
publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos
de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o
antropólogo alemão Peter Paul Hilbert.